sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O MAGNÍFICO TRAÍDO - IL MAGNIFICO CORNUTO



O MAGNÍFICO TRAÍDO / IL MAGNIFICO CORNUTO
Produção: Itália / 1964
Direção: Antonio Pietrangeli
Elenco: Claudia Cardinale / Ugo Tognazi / Gian Maria Volonté
Duração: 118 min.

Sinopse:Bem sucedido fabricante de chapéus vive feliz com sua família até que se envolve com uma respeitável senhora casada. Espantado com a esperteza de sua amante para ludibriar o marido, ele começa a se perguntar se a própria mulher não faz a mesma coisa.

            Com roteiro de Ettore Scola, temos aqui mais um filme italiano que trabalha muito bem a questão do amor e ciúme levado às últimas consequências, algo que só o cinema italiano soube fazer com maestria, evitando clichês e sabendo mesclar muito bem drama com comédia de costumes. Juntamente com Divórcio à Italiana (1962) e Seduzida e Abandonada (1963), ambos de Pietro Germi, O Magnífico Traído (1964) rompe com a tradição neorrealista do cinema italiano ao criar inúmeras situações cômicas, mas ao mesmo tempo mantêm traços ainda muito fortes desta filmografia ao expor um quadro social complexo.
            Logo nas primeiras cenas, enquanto acompanhamos o andar confiante daquele que logo identificamos como o protagonista, ouvimos a música que antevê a trama que irá desordenar o mundo deste personagem burguês: “Na noite em que parti, eu não dormi pensando em você/ Tinha um pressentimento e um grande tormento dentro de mim/ Pensava em não te encontrar, em não te ver/ No dia em que cheguei, você não estava me esperando...
            Ao contrário da maioria dos filmes europeus e italianos em particular, que procuram nos apresentar personagens “gente como a gente”, aqui estamos diante da burguesia italiana. É este microcosmo burguês que estará nas quase duas horas de filme sendo apresentado a nós com todas as suas nuances.
            Nas primeiras cenas conhecemos Andrea e sua esposa Maria Grazia, além de vários outros casais, todos bem situados em suas lindas casas e carros. A vida deles é recheada de convenções sociais, com jantares, palestras, conversas sobre negócios e amenidades onde a fofoca e a consequente maledicência dão o tom. Em um destes jantares a traição de Andrea se manifesta com um dos seus pares, a esposa de outro importante industrial. O que poderia tornar-se uma rotina diante da facilidade transforma-se em um pesadelo para nosso protagonista, uma vez que ele procura encontrar uma justificativa, uma razão para que sua amante traísse. Diante da tranquilidade desta, que, entre outras coisas, diz estar apaixonada pelo marido, Andrea começa a entrar em uma profunda confusão mental, onde mais do que ter o sentimento da culpa em trair, a possibilidade em ser o traído o leva ao desespero.
            Neste momento do filme temos várias cenas engraçadas, onde uma série de consequências o levam constantemente a interrogar a esposa. Ele procura a todo o momento encontrar alguma brecha que confirme sua tese de que é realmente vítima de traição. Por outro lado, Maria continua agindo com a maior tranquilidade diante das investidas insanas do marido. Ao contrário do clássico Dom Casmurro, onde permanecemos diante da dúvida se houve ou não traição de Capitu para com Betinho, aqui é muito fácil percebermos que a traição está apenas no imaginário de Andrea, que inclusive fantasia várias cenas da esposa em momentos íntimos com vários homens do seu ciclo social.
            A postura de Andrea realça muito bem os padrões sociais de uma sociedade machista onde o receio em ser cornudo (cornuto), vai muito além de qualquer sentimento de culpa por parte do homem em sendo ele o traidor, o que ocorre aqui. O personagem de Tognazi é casado com uma belíssima Cláudia Cardinale que, se não bastassem todos os seus atributos físicos, demonstra em várias cenas ser uma esposa dedicada, carinhosa e leal. Por outro lado sua amante, com quem ele aparece em apenas duas cenas íntimas, também demonstra ter um casamento ideal, ou seja, trai também sem pudor e mantém um casamento aparentemente sólido em todos os aspectos. Assim, o roteiro brinca com esta possibilidade da traição ser algo inato tanto em homens como em mulheres, algo que há tempos vem sendo discutido por psicoterapeutas que vez ou outra nos “brindam” com matérias na mídia. Isto é, continua sendo um assunto em voga e aparentemente sem estarmos diante de uma conclusão a respeito. Vejamos, por exemplo, o que nos diz a psicanalista Regina Navarro Lins, que lançou recentemente O Livro do Amor, volumes I e II, que procura traçar um panorama histórico deste sentimento desde a época da Pré-História até os dias atuais:
“(...) Não li em lugar algum o que me parece mais óbvio: embora haja insatisfação na maioria dos casamentos, as relações extraconjugais ocorrem, principalmente, porque as pessoas gostam de variar. O casamento pode ser plenamente satisfatório, do ponto de vista afetivo e sexual, e mesmo assim as pessoas terem relações extraconjugais. Penso que está mais do que na hora de se refletir sobre a questão da exclusividade. Essa é a maior preocupação das pessoas, mas ninguém deveria ser cobrado por isso. Em vez de nos preocuparmos se nosso parceiro (a) transou com outra pessoa, deveríamos apenas responder a duas perguntas: ‘Me sinto amado (a)? Sinto-me desejado (a)? ’ Se a resposta for positiva, ótimo. O que o outro faz quando não está comigo não é da minha conta, não me diz respeito. Não tenho dúvida que assim as pessoas viveriam muito melhor.” (em http://mulher.uol.com.br/comportamento/noticias/redacao/2010/11/23/ter-parceiro-unico-pode-se-tornar-coisa-do-passado-diz-psicanalista.htm pesquisa em 26/12/12).
            Lins não termina aqui, tece várias interpretações libertárias sobre sua visão do que é o amor e como este sentimento mudou ao longo do tempo e como está caminhando para o futuro. Entretanto, enfatiza que, mesmo entre os seus pares, são poucos aqueles que pensam de forma similar a ela, citando os falecidos Roberto Freire e José Ângelo Gaiarsa. De qualquer forma, não deixam de ser pertinentes tais interpretações para roteiros como o de O Magnífico Traído.
            Impossível restringir a análise deste filme apenas sob a ótica romântica. Como pano de fundo é a política que está sendo revista. Nos anos 60 temos a divisão entre direita/esquerda, luta de classes, a predominante influência das questões sociais na filmografia italiana, a forte presença do PCO italiano, nada disso pode ser ignorado. Nada é por acaso, assim como Andrea ser fabricante de chapéus, que antes eram parte obrigatória da indumentária dos homens e que no filme surgem como uma possível peça em desuso. Como brinca José Simão, “o chifre faz parte do homem, o touro é que o tem de enxerido”. Assim, é a burguesia italiana que é colocada em cheque. A traição e as constantes trocas entre os casais burgueses nada mais é do que um meio para explicitar a decadência das relações capitalistas. Os burgueses nos são apresentados como fúteis e presunçosos e seus problemas como banais e egoístas. Neste sentido, o personagem Belisario, um empregado desde os tempos do pai de Andrea e que o acompanha desde a infância, em determinado momento diz a Maria Grazia: “(...) talvez porque tenhamos outras coisas em que pensar, acreditamos que os ciúmes são um luxo de quem tem dinheiro e saúde”.
            É justamente este personagem Belisario, que não é burguês, aquele que consegue através da narrativa dos seus problemas familiares - sua esposa que teve quatro abortos e que apresenta surtos psicóticos - nos mostrar que são nas lutas cotidianas que temos o verdadeiro combate e que as crises de um casal burguês são vazias de significados. Enquanto o mesmo Belisario é sinônimo de equilíbrio, bom senso e ético em suas condutas, sabemos que Andrea, ao contrário, desde criança nos mostra seu caráter ao roubar da própria caixa registradora do pai e pedir a intervenção do fiel empregado para ajudá-lo.
            A cena final, onde voltamos a ouvir a música tema da abertura, nos apresenta a dança de três esposas burguesas que marcam encontros de alcova com outros homens enquanto seus maridos, sentados, conversam e marcam uma caçada para domingo. Mal sabem eles que o objeto da caça já é sabido e conhecido de suas esposas. Assim, este desejo em enganar que é implícito ao ser humano ganha uma dimensão política: a traição conjugal é uma metáfora para explicar as relações de dominação e de poder que se perpetuam no seio da classe burguesa e se impõem sobre as demais classes sociais.