domingo, 2 de setembro de 2012

VESTÍGIOS DO DIA


VESTÍGIOS DO DIA
 
 
 

 

REMAINS OF THE DAY / VESTÍGIOS DO DIA

Produção; EUA / Inglaterra / 1995

Direção: James Ivory

Elenco: Anthony Hopkins / Emma Thompson

Duração: 135 min.

 

Sinopse: 1958. James Stevens (Anthony Hopkins), um homem de idade, em um grande carro antigo começa uma viagem pela Inglaterra em direção ao mar. Por muitos anos ele foi o mordomo-chefe de Darlington Hall, uma famosa casa de campo. Nesta época sacrificou sua vida pessoal por vários anos para ter um alto desempenho profissional, mesmo reprimindo seus sentimentos e passasse uma frieza que na verdade não era parte da sua personalidade. Ele está indo visitar Sally Kenton (Emma Thompson), que ele não vê há muito tempo e tinha sido governanta em Darlington. Ele pensa que talvez ela possa ser persuadida a retomar a sua antiga posição, trabalhando para o novo proprietário de Darlington, um congressista americano aposentado.

 

 

“Por que tem sempre que esconder o que sente?”

            Esta frase dita por Emma Thompson na personagem da governanta Miss Kenton, talvez seja a síntese do belo filme de James Ivory. O protagonista, o mordomo Stevens não é capaz de responder a esta pergunta e é justamente nesta sua incapacidade em se mostrar para si mesmo e para o próximo, que temos os desdobramentos deste filme memorável.

            Stevens é o mordomo de Lorde Darlington, um sujeito “acima de qualquer suspeita” e justamente por isso, torna-se um fantoche nas mãos dos nazistas que se preparam para a Segunda Guerra com todo o revanchismo gerado pelo Tratado de Versailles. Stevens não está preocupado com isto, Stevens não está preocupado com seu pai, também mordomo que está quase moribundo, Stevens não está preocupado com o que sente ou deixa de sentir. Na verdade, para Stevens existe apenas uma preocupação e uma razão para viver: exercer com dignidade a função de servir ao seu patrão, que tal como em um feudo representa com poder total a função de Senhor.

            Em um dos diálogos do filme Stevens diz: “Eu era seu mordomo. Estava lá para servi-lo e não para concordar, discordar.”.

            “Você confiava nele?”

            “Sim, totalmente.”

            Podemos fazer várias leituras de Vestígios do Dia, uma delas é justamente a da estrutura de poder que se estabelece entre indivíduos tão distantes socialmente, que leva à total submissão do representante da classe trabalhadora diante da elite, os “novos senhores feudais” que relutam em aceitar como natural o estabelecimento de relações democráticas tanto na esfera política como na social. Com total ausência de senso crítico, Stevens é tão ou mais ingênuo que seu patrão diante dos nazistas, que são apresentados no filme como “as raposas que irão cuidar do galinheiro”. Por outro lado, o norte-americano, que participa das reuniões políticas, nos é apresentado como o único “esperto” e “inteligente” diante de europeus “bem-intencionados, mas amadores.”

            Muito já se estudou a respeito da conquista das massas populares por parte de ideologias totalitárias. Stevens não é um nazista, ele é isto sim, o exemplo claro de como não é possível existir uma posição imparcial em se tratando de idéias políticas. Quando lhe perguntam se ele não tinha curiosidade em saber o que se passava naquelas reuniões entre pessoas tão importantes do cenário político europeu, sua resposta é apenas: “Eu não ouço nada. Eu estou concentrado no meu serviço.” Segundo ele, o respeito que tem pelo patrão não está no dinheiro ou na posse deste, mas sim no que ele representa: um ser “superior em estatura moral.” Podemos afirmar que este pensamento não é próprio dele, mas sim de uma característica herdada de seu pai e com certeza dos que os antecederam. É como se o mundo medieval estivesse ali presente com toda sua totalidade, onde a dignidade e a honra estão acima da própria liberdade de pensamento. Assim, a família Stevens representa aquela que talvez seja a mais perigosa forma de dominação entre as classes sociais: aquela que se estabelece através da cultura, onde princípios e valores pré-estabelecidos mascaram a realidade social e, nascer para servir, além de ser uma obrigação passa a ser um preceito moral.

Quando Lorde Darlington comunica seu mordomo que não iria mais aceitar os serviços das duas alemãs judias que trabalhavam na mansão, Stevens consegue demonstrar certa insatisfação diante do fato delas serem boas funcionárias, mas não há nele qualquer demonstração de dilema moral, pois com certeza seu patrão estaria certo diante de tal decisão. Assim como nos episódios com o próprio pai, que ao cair e se machucar, não se cansa de mesmo ferido pedir desculpas ao patrão e de se preocupar com as peças de prataria espalhadas pelo chão. O mesmo pai que ao falecer não é visitado pelo filho, que continua servindo seu patrão no importante jantar da mansão. A justificativa é direta e precisa: “Meu pai gostaria que eu continuasse servindo.” Não existe emoção, não há desejo em Stevens, pois ele foi preparado a conter e reprimir toda manifestação de sentimento.

            Apesar da total submissão, Stevens goza de certo prestígio social, ele seria como um vassalo diante de seu suserano, mas com uma grande quantidade de servos que obedecem às suas ordens. Naquele microcosmo há toda uma hierarquia que é vez ou outra quebrada pelos funcionários justamente naquilo que Stevens mais procura evitar: a paixão.

No contra ponto de nosso protagonista temos a governanta Miss Kenton que tem princípios opostos, usa sua feminilidade para “bater na porta” do coração de nosso triste mordomo. Na belíssima fotografia do filme, o destaque fica por conta dos tons claros, o azul que contrasta com a sombra de ambos quando do anúncio da morte do pai dele e o amarelo. Estes tons valorizam ainda mais os cabelos da governanta que passa a nutrir pelo seu superior um misto de paixão e raiva por não ser correspondida em suas investidas em seduzi-lo.

            Interessante observar a grande dificuldade de Stevens em olhar para os interlocutores quando fala, principalmente para as mulheres. Aliás, neste aspecto, Miss Kenton o questiona pelo fato dele evitar contratar mulheres bonitas. Aos poucos, a governanta vai conhecendo todos os seus segredos o que acaba desembocando na cena mais emblemática do filme, de uma beleza encantadora por sua singeleza: Stevens está lendo um livro e recebe a visita da governanta em sua sala que leva flores em um vaso. Curiosa, ela quer saber o que ele está lendo, ele abaixa o livro e vira o rosto se recusando em dizer ou mostrar o livro, ela continua insistindo e ele vai se sentindo cada vez mais acuado em seu próprio ambiente, a tensão para ele é absoluta levando-o a se levantar e a ficar prostrado encostado na parede, escondendo ainda o título do livro. Ela continua se aproximando, pergunta se é um título erótico, pergunta se ele a está “protegendo” em não mostrar o livro. Ela sorri, brinca, provoca, está querendo ser beijada por aquele homem impassível. Stevens está derrotado, permite que ela toque em seus dedos e retire o livro de suas mãos. Surpresa ela diz: “É uma história de amor.”

“Leio qualquer livro, para aprimorar meu conhecimento da língua inglesa.”

Um comentário equivalente ao de comprar Playboy para ler as entrevistas.

 Ao se afastar, acompanhamos todo o desconforto e decepção de Miss Kenton que é incapaz de seduzir o personagem de Anthony Hopkins. E assim o filme segue uma perseguição da gata e o rato. Uma mulher solitária e apaixonada, mas incapaz de se aproximar de um homem que mais se parece com um rato por esconder tanto seus desejos mais íntimos. Stevens pode gerar os pensamentos mais difusos, desde a compaixão por sua incapacidade de amar até a raiva por sua brutal paralisia diante dos vestígios do dia que seguem o curso natural das coisas ao contrário dele, um sujeito em constante descompasso com si mesmo. Já Miss Kenton, resolve se casar “com o primeiro que aparece”, sem antes fazer uma série de tentativas sem, entretanto se declarar a ele, o que seria uma função tipicamente masculina, pelo menos na sociedade retratada no filme baseado no livro de Kazuo Ishiguro. Cada vez mais insatisfeita, o provoca dizendo que ela e o namorado riam muito de seus hábitos e maneirismo e, na cena mais dramática ela começa a chorar de joelhos no chão, Stevens a ouve chega sorrateiramente até ela e, enquanto os mais românticos acreditam que ele irá consolá-la e beijá-la levando-os ao tão sonhado final feliz, o máximo que ele faz é dizer a ela que observe com mais atenção o serviço da nova empregada que está deixando os objetos com pó. Nesta cena, só vemos as pés dele, a câmara fecha o plano na face de Miss Kenton que, com os olhos cheios de lágrimas observa com profunda decepção a fala daquele homem tão próximo, mas ao mesmo tempo tão distante.

            A paixão em silêncio de Miss Kenton e a repressão de Stevens diante do amor, reforçam muito bem a força do filme baseado em cenas onde a comunicação não verbal, mas gestual, conduzem com maestria os desejos de nossos personagens, que carregam uma vida de frustrações, ela uma mulher que se casou sem amor e que prestes a ser avó está separada do marido, ele um homem que viveu apenas para servir aos outros e que não conseguiu em nenhum momento da vida servir a si próprio.

            Ao final do filme somos agraciados com mais duas belas cenas: depois de vinte anos ambos se reencontram, ele planejava “consertar o passado”, mas sabemos que não será capaz disto, ela insiste em dizer em cartas que os melhores momentos de sua vida foram no trabalho na mansão de Lorde Darlington. Ambos querem uma segunda chance, mas não há mais esta possibilidade. Ele diz a ela que provavelmente é a última vez que estão se vendo. Eles se despendem com um aperto de mão enquanto o ônibus dela está partindo, talvez o momento mais romântico do filme. Enquanto ela se distancia ele diz Adeus, retirando o seu chapéu com todo o formalismo que sempre esteve presente em seus atos, tal como quando separava milimetricamente os utensílios da mesa de jantar. A câmera nos dá novamente um close do rosto da ex-governante, ela chora e muito. Não há dúvidas, Stevens foi o homem de sua vida. Mais uma vez não precisamos de diálogos, os gestos falam por si só.

            Na última cena, uma metáfora: uma pomba cai pela chaminé da mansão. O novo proprietário consegue pegá-la e a joga para fora. Stevens vê a pomba voar, fecha a janela e se volta a seus afazeres. A imagem vai se afastando cada vez mais e a mansão tão enorme vai se tornando pequena, cada vez menor, tal como o coração de Stevens.

            Há uma música do Toquinho onde ele dizia a respeito de “uma gente que nem se vê”. Stevens pertence a este grupo de gente, reprimida em seus instintos básicos de sobrevivência e alegria. Logo no início do filme, em uma cena de caça à raposa, nosso mordomo aparece em pé segurando em uma mão uma garrafa e em outra um copo sendo oferecido a um dos cavaleiros em que só vemos seus pés, pois está montado em um cavalo, Stevens permanece por um bom tempo ali parado, com o copo levantado, enquanto não é nem notado.

A questão é: quantos Stevens conhecemos? Quantas vezes nós nos fazemos passar por Stevens? Este filme nos leva a refletir a respeito de nossas frustrações, nossas omissões a respeito de um mundo que não conseguimos compreender, ou que insistimos em vê-lo como uma aberração, um poço de virtudes desvirtuadas em nome de nossas fraquezas e incapacidades em amar e de se fazer amar.

           

           

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